Uma forte tendência na Igreja brasileira.
Um perigoso bloqueio intelectual está sendo inserido na mente dos cristãos da igreja brasileira. Trata-se de uma onda de conformismo acrítico, ou seja, a aceitação cômoda de não criticar as palavras e atitudes das pessoas no ambiente eclesiástico, impossibilitando o crente de provar pensamentos e atitudes de maneira biblicamente racional.
O apóstolo Paulo adverte que a nossa fé não deve ser irracional: “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Rm 12:1, negrito meu).[1] O reformador Calvino alertou que “a fé não consiste na ignorância, senão no conhecimento; e este conhecimento há de ser não somente de Deus, senão também de sua divina vontade.”[2] Excluindo o senso racional, o cristão ficará intelectualmente enfraquecido e mais propício a aceitar os enganos dos falsos profetas que Cristo nos alertou: “levantar-se-ão muitos falsos profetas e enganarão a muitos” (Mt 24:11).
Em primeira análise, percebemos que este bloqueio intelectual é resultante dos famosos terrorismos espirituais, causados por clichês como “não toqueis nos ungidos de Deus” e “não devemos julgar”, que infelizmente são ensinados e defendidos por muitos líderes. Porém, é importante salientar que na verdade trata-se de conceitos teológicos errôneos, dos quais tem como objetivo impossibilitar a pessoa de desenvolver suas faculdades mentais de raciocínio lógico, facilitando o falso líder a ter um controle manipulável dos membros de sua respectiva comunidade.
Aqueles que são resignados a esta condição acrítica, acomodam-se na posição irracional de “crente manipulado”, bloqueando qualquer ação iniciativa e inibindo o desejo de evoluir teologicamente. Ou seja, o crente estará sujeito à restrição de qualquer questão doutrinária e/ou moral, aprisionando sua mente ao ponto de não conseguir discernir mais o certo do errado. Neste caso, as verdades absolutas estão enganosamente contidas nas palavras de seus respectivos líderes e não na Bíblia. Com isso, não há entendimento bíblico correto dos textos sagrados, fazendo com que nos ambientes eclesiais os falsos conceitos ensinados sejam tidos como verdades espirituais absolutas e inquestionáveis.
Para as pessoas nessas condições, uma exortação vinda de alguém sobre o perigo eminente decorrente de algum erro teológico, praticamente não possui efeito, pois a comodidade e a cegueira espiritual é um impedimento para tais pessoas crescerem e se aprofundarem nas verdades bíblicas, bem como desenvolver a verdadeira fé cristã com discernimento e senso crítico. Afinal, a mentira dita várias vezes pelo falso líder torna-se verdade absoluta e a ideia apócrifa do “ungido de Deus incriticável” é facilmente implantada.
Na verdade, seguir este conceito é um tremendo engano, pois a Bíblia mostra exatamente o contrário! Um exemplo claro está em Atos 17:11, onde narra que os crentes de Beréia eram pessoas nobres, porque conferiram nas Escrituras o que ouviram de Paulo, para ver se, de fato, era verdade. Caro leitor, seja sincero! Você tem o costume de conferir na Bíblia tudo o que ouve e vê? Se a resposta for não, você pode estar vivendo algo parecido com o que descrevi acima.
Neste caso, é necessário uma atitude urgente, voltando-se para a Bíblia antes que seja tarde, pois se a mesma é a nossa única regra de fé e conduta, devemos tê-la como bússola para todas as nossas atitudes. Caso contrário, estaremos inconscientemente negando a Bíblia e depositando a nossa esperança em homens. O primeiro passo é desmistificar os dois pontos principais que causam o comodismo acrítico, citados no começo desse artigo.
1 – Não toqueis nos ungidos de Deus!
As passagens bíblicas utilizadas para defender que não devemos “tocar nos ungidos de Deus” são 1Sm 24:6 “E disse [Davi] aos seus homens: o Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, isto é, que eu estenda a mão contra ele, pois é o ungido do Senhor. Dizendo: Não toqueis nos meus ungidos, nem maltrateis os meus profetas.” e Sl 105:15 “Não toqueis nos meus ungidos, nem maltrateis os meus profetas”.
Baseado nesses dois versículos, muitos líderes tendenciosos criaram uma classe especial de crentes que, segundo eles, seriam absolutamente incriticáveis ou inquestionáveis, como se fossem mediadores exclusivos entre o homem e Deus. Isso é um tremendo engano, pois o nosso único mediador é Jesus Cristo (1Tm 2:5).
Biblicamente, ungir significa “derramar óleo sobre”. Na cultura judaica antiga, era a forma de oficializar um ofício de sacerdote, ou de reis, para credenciá-los a serem mediadores entre Deus e a humanidade. Por esta razão, Jesus é chamado de Cristo ou Messias, palavras que significam “ungido”.
Em 1Sm 24:6, Davi está falando exclusivamente de Saul, que era ungido como rei. Em Sl 105:15, o salmista fala dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó. Em ambos os casos, o sentido de “tocar”, segundo o contexto, significa utilizar de violência física, maltratar, estender a mão contra. Em momento algum estas passagens são direcionadas contra questionamentos e/ou críticas. Se fosse assim, invalidaria a repreensão do profeta Natan a Davi (2 Sm 12:1-15), a crítica e repreensão de Paulo para com Pedro em seu erro doutrinário (Gl. 2:11-16) e até mesmo o próprio Jesus em várias críticas e repreensões que o mesmo fez aos fariseus (Mateus 23:23 e Lucas 11:23).
No Novo Testamento, o termo “unção” (grego=chrisma) aparece apenas três vezes, dentro de uma mesma passagem, 1 Jo 2:20 e 27, na qual afirma que todos nós recebemos e temos conhecimento da “unção que vem do Santo“, ou seja, todos nós somos capacitados pelo Espírito Santo (2Co 1:21-22). Em comparação, a palavra “ungido” (grego=Christos) é direcionada exclusivamente para Cristo, nunca para os líderes da igreja, nem mesmo aos apóstolos.[3]
Portanto, não existe qualquer possibilidade exegética que dê margem para aplicar as passagens veterotestamentárias em questão aos líderes da igreja, tornando-os incriticáveis e imunes a repreensões.
2 – Não devemos julgar!
A primeira passagem Bíblica que devemos analisar, talvez seja a mais usada para afirmar que não devemos julgar aqueles que ensinam conceitos contrários as Escrituras. Trata-se de Mateus 7:1 “Não julgueis, para que não sejais julgados.” Pegando este versículo isolado, de fato, a interpretação será absoluta para “não julgar”. Porém, jamais devemos interpretar textos bíblicos de maneira isolada, retirando as passagens de seus respectivos contextos. E o contexto direto da passagem nos diz claramente que Jesus não proibiu o julgamento em si, mas um tipo de julgamento específico. Vejamos: “Pois, com o critério com que julgardes, sereis julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também. Por que vês tu o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho e, então, verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão.” (Mt 7:2-5)
No versículo 1, Jesus disse aos judeus que eles não deveriam julgar. Já do versículo 2 em diante, Cristo dá a razão pela qual eles não poderiam julgar: o julgamento hipócrita! Os judeus estavam condenando os pecados dos irmãos, porém eles próprios estavam praticando as mesmas coisas (e até piores). Imagine como exemplo, uma mulher que abortou uma criança criticando um bandido que matou alguém em um assalto! Por fim, no versículo 5, Cristo diz que devemos primeiramente corrigir os nossos próprios pecados, para somente depois ajudar o nosso irmão, corrigindo-o de seu erro.
Outra passagem bastante utilizada pelos líderes manipuladores é Romanos 14:10, onde diz: “Mas tu, por que julgas teu irmão? Ou tu, também, por que desprezas teu irmão? Pois todos havemos de comparecer ante o tribunal de Cristo“. Da mesma forma que Jesus, Paulo não está condenando o julgamento em si, mas sim um julgamento específico. Segundo o contexto, alguns irmãos recém convertidos eram legalistas, com isto os cristãos mais experientes estavam ficando impacientes. Paulo faz uma exortação para que os mesmos sejam mais tolerantes e não julguem os débeis (fracos) na fé, acolhendo-os com aceitação, pois com o tempo o amadurecimento viria naturalmente. Vale lembrar que, o que estava em questão não eram assuntos que comprometiam a ortodoxia cristã, mas sim pontos secundários da fé. Se fosse algo que comprometesse a fé cristã, Paulo com certeza teria outra atitude (Gl 1:6-7, 3:1-5, Fp 3:2, 18-19).
A Bíblia claramente instrui os cristãos a julgar todas as coisas. Prova disto está em João 7:24: “Não julgueis segundo a aparência, e sim pela reta justiça”. No contexto da passagem, Cristo está confrontando os judeus que questionaram sua doutrina, e tinham-no acusado de ter um diabo (vs 20) e de quebrar o dia do Sábado curando um homem (Jo 5:1-16). A questão colocada por Jesus é o ato de julgar de maneira exterior e superficial, ou seja, sem conhecer realmente os fatos, tornando o julgamento injusto. O ato de julgar “pela reta justiça” tem como premissa a lei de Deus como padrão pelo qual discernimos as coisas, pois a Bíblia é a nossa única regra de fé e prática.
1ª Coríntios 5 também é uma base bíblica importante a respeito do nosso dever de julgar. No versículo 3 Paulo declara, sob a inspiração do Espírito, que ele tinha julgado um membro da igreja em Corinto que estava vivendo no pecado de fornicação. Seu julgamento a tal pessoa foi “seja entregue a Satanás para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no Dia do Senhor Jesus”. Já nos versículos 9 a 13, Paulo lembra aos santos do seu dever de julgar as pessoas que estão dentro da igreja, se elas estão ou não obedecendo à lei de Deus. Aqueles que alegam ser cristãos e são membros da igreja, mas que são julgados como sendo desobedientes a qualquer mandamento da lei de Deus (vs 9-10), devem ser excluídos da comunhão da Igreja. Paulo, sob a inspiração do Espírito, diz para a igreja não tolerar pecadores impertinentes.
Outras passagens bíblicas também indicam que é de nossa responsabilidade julgar. Jesus pergunta às pessoas em Lucas 12:57: “E por que não julgais também por vós mesmos o que é justo?”. Paulo orou para que o amor dos crentes em Filipos “aumentasse mais e mais em pleno conhecimento e toda a percepção” (Fl 1:9). Ele disse aos Corintos: “Falo como a criteriosos; julgai vós mesmos o que digo” (1 Co 1:15).
Os cristãos são solicitados a examinar tudo e reter o bem (1 Ts 5:21). Eles também são obrigados a provar se os espíritos são de Deus: “Irmãos, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas tem saído pelo mundo afora” (1 Jo 4:1). Mesmo nas reuniões cristãs eles devem “julgar” o que ouvem: “Tratando-se de profetas, falem apenas dois ou três, e os outros julguem” (1 Co 14:29). Os Crentes de Corinto receberam ordens para julgar imediatamente a imoralidade existente entre os seus membros (1 Co 5:1-8). Mesmo o estrangeiro de passagem não deve ser hospedado se for verificado que não se trata de uma pessoa alicerçada na verdadeira fé ( 2Jo 10,11). Deve ser considerado como anátema (maldição) àqueles que apresentarem algum tipo diferente de evangelho (Gl 1:9).
Portanto, concluímos que biblicamente é dever de todo Cristão Julgar, fazendo juízo através de suas faculdades mentais de raciocínio. Se alguém ensinar algo em desacordo com as Escrituras – mesmo partindo do líder de sua igreja, esta pessoa deve ser confrontada com a Bíblia, obviamente com respeito e submissão. Ninguém, absolutamente, é intocável ou incriticável, pois não há respaldo bíblico para afirmar que exista um nível de “unção especial” que anule o raciocínio para o entendimento de qualquer coisa falada, ensinada e praticada. Tudo deve ser conferido na Bíblia.
Por fim, alerto que este ato de julgar não significa fazer injúrias ou calúnias, com comportamentos de sarcasmo e desprezo sobre a pessoa que está no erro, mas sim deve ser feito com linguagem sadia e irrepreensível, no âmbito teológico e moral (Tito 2:7-8, 1Pe 3:15-16). Se alguém está desviando-se do Evangelho e pregando heresias, a nossa obrigação é alertar, repreender, exortar e conduzir o pecador ao entendimento bíblico (2Tm 4:2-4). Caso a disciplina seja indispensável, a mesma deve ser aplicada com seriedade, amor e tristeza, sempre objetivando o arrependimento, e não a condenação eterna do pecador, algo que cabe exclusivamente a Deus.
Soli Deo Gloria!
Notas:
[1] – A tradução bíblica utilizada no artigo é a Almeida Revista e Atualizada – SBB.
[2] - CALVINO, João. As Institutas Vol. 3. Casa Ed. Presbiteriana. São Paulo, 1985. P. 25.
[3] – Concordância Fiel do Novo Testamento Grego-Português, Vol 2. – Editora Fiel
Fonte: [ Bereianos ]
0 comentários:
Postar um comentário